Paulo Afonso tem o maior índice de suicídios do Estado, diz reportagem especial do Correio da Bahia

  Segunda, 28 de setembro de 2020
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Paulo Afonso tem o maior índice de suicídios do Estado, diz reportagem especial do Correio da Bahia

    Reportagem: Fernanda Santana (Correio da Bahia)

    Esta poderia ser a história de Marcelo*, um jovem que queria ser pintor. Mas não será. Desde que o telefone tocou na casa do rapaz, numa tarde de julho de 2019, e Joana, sua mãe, despencou sobre a cadeira ao ouvir a notícia do outro lado da linha, o futuro ficou por ser escrito. Marcelo morreu por suicídio. Ele vivia em Paulo Afonso, no Nordeste Baiano, o município com maior índice de suicídios do estado, onde os casos chegam a ser, proporcionalmente, 12 vezes mais frequentes que na capital, Salvador. No interior baiano, no ano passado, duas pessoas morreram, em média, pelo mesmo motivo que Marcelo.

    A região de Paulo Afonso, onde vivem 118,5 mil pessoas, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2020, teve a maior média de suicídios na Bahia a cada 100 mil habitantes, em 2019. Foram 14 mortos por autolesão provocada intencionalmente, mostra o DataSus, o que resulta num índice de 12 casos a cada 100 mil pessoas**. Um deles, Marcelo, o menino que queria pintar a vida, o filho de Joana, dois nomes fictícios de uma história real que não é só a deles – a do suicídio nas cidades do interior baiano. Nos demais interiores da Bahia, foram 600 mortes por suicídio. O Brasil registra, por grupo de 100 mil habitantes, de quatro a seis suicídios por ano.

    A mãe do jovem pediu anonimato aos dois. Se a saúde mental ainda é estigmatizada em metrópoles, pior é nos interior, onde o tema chega a ser depreciado, a estrutura deixa a desejar e o machismo impera. Marcelo tinha 18 anos, morava com a mãe e era diagnosticado com depressão grave. Seu quadro clínico era tabu na família. Tratava-se como polêmica aquilo que é uma doença que promove alterações psíquicas e fisiológicas no corpo – como a desregulação na produção e captação de hormônios como a serotonina, ligada ao prazer. (Veja abaixo onde conseguir ajuda)

    A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os índices de suicídios sejam calculados em cidades com mais de 100 mil habitantes – Paulo Afonso é um dos 17 municípios baianos com esse perfil. Em locais pequenos, a divisão entre casos de suicídio pela população pode falsear um número elevado. Com base nisso, o CORREIO tabulou os dados do DataSus, do Ministério da Saúde, e cruzou com as populações estimadas pelo IBGE. Na lista, atrás de Paulo Afonso, aparecem Jequié e Vitória da Conquista, com média de 6,2 e 5,4 suicídios a cada 100 mil pessoas, no ano passado, respectivamente.

    Em Salvador, a média foi de um óbito por autolesões intencionalmente provocadas, por 100 mil pessoas. Pode haver subnotificação tanto na capital quanto no interior, frisam psicólogos e psiquiatras. A quantidade de futuros que não chegam pode ser ainda maior.

    O suicídio, explica Soraya Carvalho, psicanalista e coordenadora do Núcleo de Estudos e Prevenção do Suicídio (Neps) do estado deve ser enxergado como um fenômeno multifatorial, resultante da interação de uma variedade de fatores. Ela destaca a história de vida da pessoa, traumas passados – como violências e abusos sexuais -, traços de personalidade – como agressividade e impulsividade -, transtornos mentais – como a depressão grave – , dependência química do álcool e questões sociais.

    “O suicídio é uma saída para a dor de existir. Muito se fala sobre a relação do suicídio com transtorno mental, mas já se discute isso. Existe também uma questão social muito forte, que tem um impacto no número de casos”, comenta.

    O depressivo, portanto, não necessariamente terá o suicídio como desfecho, e pessoas não depressivas podem chegar a cometer o ato. Um dos resultados dessa percepção têm sido abordagens mais abrangentes sobre a questão. Entre 2006 e 2015, um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou, nos interiores brasileiros, um crescimento de 13% nos casos de suicídio; nas capitais, como Salvador, 24%. Os pesquisadores incluíram indicadores, como o desemprego e a desiguldade social, para debater o tema.

    Na Bahia, o CORREIO calculou nos interiores um crescimento de 59% nas mortes por suicídio de 2010 até o ano passado, até três vezes mais que o identificado pela Unifesp. O crescimento pode mostrar um esforço em notificar os casos, mas também denunciar pedidos de socorro às vezes perdidos no silêncio.

    Só três municípios do interior têm leito psiquiátrico
    A cidade de Paulo Afonso fica na região Nordeste da Bahia, onde a seca assola na maior parte do ano. É conhecida, principalmente, pelas usinas hidrelétricas instaladas pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco na década de 50, rodeadas por cânions que margeiam o azul do Rio São Francisco. Também ganhou fama por ter sido endereço de um dos esconderijos de Lampião, a Gruta do Morcego, que também atrai turistas à região.

    É um município entre a urbanidade e a vida interiorana do sertão, em que a cultura patriarcal prevalece e as oportunidades de emprego são contadas nos dedos, enquanto as exigências de produtividade e a exposição em redes sociais são igualmente intensas. Nos momentos de lazer, os moradores costumam se reunir nas praças ou nos bares das avenidas Getúlio Vargas e Apolônio Sales. Segundo o IBGE, 85% da população está desempregada e 43,5 % sobrevive com até meio salário mínimo – o 379º com menor renda dos 417 municípios baianos. A Secretaria Municipal de Educação afirma que a taxa de escolaridade em Paulo Afonso é de 96%.

    Num consultório no centro da cidade, Jalane Maia, psicóloga e membro da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio, atende pessoas com transtornos de saúde mental. Ela destaca o quanto os jovens têm, com mais frequência, procurado ajuda. Das 55 mortes por suicídio em Paulo Afonso desde 2010, 28 foram de pessoas entre 15 a 29 anos. O perfil se repete não só no município. O suicídio é a terceira causa de mortes entre jovens brasileiros, atrás de homicídio e acidentes de trânsito, mostra a OMS.

    Em 2018, interessada em estudar o suicídio sob a perspectiva do interior, Jalane iniciou visitas a dez comunidades rurais no entorno. Ela reuniu 50 adolescentes, dos 15 aos 18 anos, para conversar sobre o tema. O estudo resultou em sua dissertação de mestrado em Extensão Rural, na Universidade Federal do Vale do São Francisco. Uma tarde, em julho do ano passado, chamou um grupo para uma roda de conversas. O papo ia à metade quando uma menina contou ter se autolesionado. Poucos dias depois, os jovens pediram que os pais também fossem orientados.

    O grupo dizia não querer falar sobre as próprias dores, sobretudo os homens, com medo de ser chamados de “fracos” na comunidade onde viviam. São eles, inclusive, os que mais morrem por suicídio – na Bahia, são 83% do total, no interior ou capital. O padrão é observado de forma geral, no país.

    “Há uma rachadura social e isso é potencializado no interior. É profundo: precisamos ver a questão cultural, econômica, social, a falta de perspectivas de conseguir empregos, uma boa formação educacional. Os fatores de risco se acumulam e devem ser considerados”, pontua Jalane.

    Os casos de suicídio ainda não despertaram estudos da rede pública municipal. As secretarias Municipal de Saúde e Desenvolvimento Social dizem realizar ações de acolhimento em três espaços e campanhas de conscientização.

    A coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial 2 do município, Iza Pionório, observa a crescente de casos, mas sem perfil comum. O atendimento voltado para a prevenção ao suicídio é feito em três espaço. As pessoas que morreram por suicídio – que constam nas estatísticas – não procuraram esses centros, segundo ela. É um dos pontos que evidencia as barreiras entre precisar e buscar tratamento num contexto de rotulação da saúde mental.

    “Cada um vive sua realidade, são inúmeros fatores que recaem sobre isso. É um trabalho educativo e a passos de formiguinha, para colocar na cabeça delas algo que é científico, que depressão não é fingimento, que ninguém se isola porque quer”, explica Pionório.

    O município, na verdade, está imbricado numa rede muito mais complexa de tratamento da saúde mental nos interiores. Dos 417 municípios baianos, somente Feira de Santana, Jequié, Salvador e Vitória da Conquista têm leitos psiquiátricos, destinados a pacientes que precisam ser internados depois de crises ou tentativas de suicídio. Quando há necessidade, o internamento é feito em leitos comuns, sem acompanhamento direto de psicólogos e psiquiatras.

    Mas, há relatos de que hospitais chegam a se recusar a internar pessoas em situações de crise ou tentativa de autolesão. “Dizem que é uma questão psiquiátrica, mas se não tem leito, para onde enviar?”, questiona a psicóloga Jalane. A expansão de leitos psiquátricos, acredita ela, é uma das frentes estruturais de prevenção ao suicídio.

    O Neps, ligado à Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), em Salvador, não está conectado ao interior numa rede. Os serviços prestados pelo Neps deveriam atender 30% da demanda da capital baiana e 70% fora dela. Há 350 pessoas à espera. E esse é um dos casos em que o aguardo custa vidas. A Sesab não comentou nem a questão dos leitos, nem dos casos de óbitos por autolesão intencional no interior.

    Entre o machismo e o desconhecimento
    O plantão estava no turno da tarde, quando uma colega bateu à porta da sala da psiquiatra Maria Elisa Barros, diretora da Associação Psiquiátrica da Bahia, no centro de atenção psicossocial (Caps) de Guanambi, Sul da Bahia. A médica pediu que entrasse. “Ela tinha ido me contar que um paciente tinha morrido por suicídio”, lembra Elisa, quase um ano depois. Semanas antes, o paciente, um homem com 50 anos, agricultor, desabafou. Sentia-se fraco e, na única realidade conhecida, a rural, era “uma fraqueza que homem não poderia ter”, como relatou.

    Nos interiores, principalmente os menores, há ainda uma questão de privacidade envolvida – o temor de se tornar motivo de assunto nas calçadas, por exemplo, pode desestimular a busca por tratamento.

    “Isso mostra o quanto existe falta de informação, de acesso. Informação salva vida e é importante conscientizar as pessoas que suicídio é prevenível. Podemos salvar várias vidas se o estigma for rompido”, opina a médica, também membro da Comissão de Emergências Psiquiátricas da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

    Nos anos 80, a economia local foi projetada pelo plantio de algodão. Hoje, com 86,8 mil habitantes, é considerada polo comercial. Ao menos 82% da população está desempregada e 44% ganha até R$ 522, mostra o IBGE. A saúde mental nem sempre é discutida.

    Dos três psiquiatras que trabalham na cidade, como Maria Elisa, dois atuam na rede pública. A fila para conseguir atendimento, nos dois Caps e um ambulatório de saúde mental, chega a seis meses. Em fevereiro, numa só semana, a população acordou com a notícia de que duas pessoas morreram por suicídio – uma delas era apenas uma menina, tinha 14 anos; a outra, 52. Dois futuros apagados.

    A diretora de Saúde Mental do município, Jaqueline Castro, classifica o índice como “alto” e que “trabalham para diminuí-lo”. A Sesab calcula, em 2020, 369 suicídios. O número por município não foi informado. Em 2019, foram 629 mortes por autolesão intencional no estado. Nos últimos 10 anos, foram 5.110 mortes pela mesma razão na Bahia – 4.446 delas no interior. Há dois anos, estudantes da área de saúde criaram, em Guanambi, um grupo de pesquisa para estudar a temática, pondo na balança aspectos sociais e culturais.

    A literatura registra a ligação do social com a saúde mental mesmo fora da alçada médica. O professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rodrigo Oliveira, especialista em avaliação de políticas públicas, aponta que qualquer entrave à qualidade de vida pode levar ao aparecimento de problemas de saúde mental.

    Em 2019, o IBGE mostrou que 66,4% da população dos interiores baianos estava desempregada – em Salvador, eram 20,7%. A informalidade, por outro lado, era a realidade de 57,4% dos habitantes do interior.

    ‘Elas precisam saber que podem ter ajuda’, diz psiquiatra
    Não se sabe exatamente quando, nem porque, alguns indivíduos se fecham num estado de sofrimento profundo, enquanto outros não. Uma definição de Andrew Solomon, escritor de O Demônio do Meio-dia: uma anatomia da Depressão (Companhia das Letras/584 pg/R$ 64,90), ajuda a entender: “É a solidão dentro de nós que se torna manifesta e destrói não apenas a conexão com outros, mas também a capacidade de estar em paz consigo mesmo”.

    O próprio Solomon, no entanto, diz que não se pode fazer uma associação direta entre suicídio e depressão. Acontece que, nos dois casos, há em comum esse estado de sofrimento aparentemente insuperável para quem sente.

    “As pessoas que se machucam, com intenção de morrer, não querem se matar. É um ato desesperado em que se pensa que aliviarão a dor. Elas precisam saber que podem ter ajuda”, explica a psiquiatra Ana Paola Robatto, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e uma das referências em Psiquiatria Infantil no estado.

    Não há um conjunto típico de sintomas para identificar uma intenção suicida. Mas uma associação com comportamentos impulsivos, alterações de padrões no sono e alimentação – no caso de adolescentes, principalmente – e marcas de autolesão no corpo e frases como “não vejo sentido em viver”.

    A campanha para que se fale sobre o assunto tem ganhado força nos últimas meses também pelos abalos na saúde mental potencializados pela pandemia – o que tem sido chamado de “a quarta onda da pandemia”. Segundo o Conselho Federal de Medicina e Associação Brasileira de Psiquiatria, “falar com alguém sobre o assunto pode aliviar a angústia e tensão”, mas sem julgamentos e críticas. O mês de setembro é considerado o mês internacional de prevenção ao suicídio. É o chamado Setembro Amarelo, cor que representa a valorização da vida.

    Há 10 anos, Jalane, que hoje trabalha em Paulo Afonso, na prevenção ao suicídio, recebeu uma ligação enquanto assistia a uma aula. Seu pai havia morrido por suicídio. “Sou o que se chama de sobrevivente”, diz. Os sobreviventes são aqueles que foram impactados por um suicídio. Eles são enquadrados no grupo de risco ao suicídio, formado também por vítimas de violências históricas – como a população negra e LGBTQIA+ -, dependentes químicos, depressivos e vítimas de algum trauma grave.

    O suicídio impõe desafios que precisam ser trabalhados ao longo do tempo. Os sobreviventes, por exemplo, devem ser acompanhados. No caso dos interiores, os obstáculos estão ainda mais enredados. “Vivemos numa lógica do imperativo do sucesso e felicidade. Uma lógica do capital para atingir o que é ‘ideal’, que potencializa as frustrações, pois as oportunidades não são iguais”, acrescenta a psicanalista Soraya Carvalho.

    Os futuros apagados são reveladores sobre o presente. Um presente que exige novos caminhos para escrever novas histórias.

    Precisa de ajuda? Telefones úteis que atendem 24 horas.
    – 188 (Centro de Valorização da Vida);
    – 190 (Ligação de Emergência);
    – 192 (Samu);
    – (71) 3103-4300 (Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (Neps).

    *Os nomes e alguns detalhes da história foram modificados para impedir a identificação das pessoas.

    **Os números de 2019, do DataSus, ainda podem passar por alterações ao longo do ano.

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